Explicação da pintura realizada pelo padre Marko Ivan Rupnik

A família, por si, pertence à existência segundo a natureza. Sabemos que mesmo no mundo animal há famílias. Até mesmos os pássaros e os peixes têm uma família.
Isso quer dizer que a família exprime o modo de existir dos seres vivos: é uma realidade que pertence à natureza do mundo criado.

Mas, para a nossa fé, segundo a tradição cristã, não é assim. Pelo Batismo, nós, cristãos, recebemos uma vida nova, não conforme a existência da natureza, mas conforme uma vida que pertence a Deus. Deus faz-nos participantes do seu modo de existir.

Para nós, cristãos, a família é a expressão de um sacramento, o Matrimônio. E isso muda totalmente o seu sentido, porque um sacramento acarreta sempre uma transformação. É em meio à vida natural que o Espírito Santo realiza a transformação do modo de existência. E fá-lo transfigurando a vida natural, não a negando, mas assumindo-a e transformando-a, porque a primazia não é mais da natureza, mas da relação.

Assim, para realizar esta pintura, por ocasião desta grande reunião das famílias, pensei por onde começar.

O que eu considerava mais importante era mostrar a novidade da família segundo a Igreja, segundo o Batismo, segundo a vida em Cristo, segundo o homem novo.
Por isso lembrei-me do grande padre da Igreja siríaco, São Jacó de Serugh, que fala do “véu de Moisés”.

São Jacó compõe uma belíssima homilia em versos sobre a passagem do livro do Gênesis em que se diz que “Deus criou-os homem e mulher”, e depois que “O homem deixará o seu pai e a sua mãe e unir-se-á à sua mulher de modo a tornarem-se um só”, isto é, uma realidade só, uma só carne.

São Jacó de Serugh diz que Moisés falou, sim, de homem e mulher, mas o que ele viu foi algo além dessa realidade, uma realidade mais profunda, da qual não ousava falar. Por esta razão, pôs sobre ela um véu, de modo que ninguém pudesse ver realmente o que os seus olhos contemplaram. Por quê? Porque a humanidade ainda não estava pronta para acolher este grande Mistério.
Já que se trata da união do homem e da mulher, escolhi a imagem das bodas de Caná. Sabemos através dos textos sapienciais — como o Eclesiástico, por exemplo — que o vinho é o que dá gosto à vida, porque o vinho é o amor que encerra em si o sentido da existência humana. Nesse sentido, no episódio de Caná, quando Maria diz “Não têm mais vinho”, naquele momento, o que Maria diz a Cristo na verdade é: “São esposos, mas já não têm amor”.

E dado que na imagem homem-mulher via-se a relação entre Deus e a Igreja (basta pensar no Cântico dos Cânticos), podemos deduzir desta passagem que a relação entre o homem e Deus se esgotou, não é mais vivida, não é mais fundamentado no Amor.

Assim, a tradição patrística vê nas seis talhas a lei de Moisés que devia servir para a purificação. Essas seis talhas, porém, estão vazias. Além do quê, são de pedra. Desta forma, no episódio de das bodas de Caná, dá-se um passo enorme na relação entre o homem e Deus: acaba uma relação baseada numa lei que vem de fora, lei que vinha sendo cada vez mais lida e percebida de maneira moralista; no seu lugar, manifesta-se uma nova relação entre Deus e o homem, que é uma relação entre Pai e Filho, na qual tomam parte todos os que fazem sua a vida do Filho.
É uma relação construída verdadeiramente no Amor e que se torna expressão do Amor.

Tomei então essa imagem de Caná e fui ter com Jacó de Serugh.
Qualquer pessoa que se entenda um pouco de iconografia cristã antiga vai reconhecer neste servo das bodas o rosto de São Paulo.
Alguém poderia dizer: “Mas o que é que tem a ver São Paulo com as bodas de Caná, se Paulo não estava nem em Caná no dia desse casamento?” Juro que tem a ver! Vamos ver!
Gostaria de ler alguns trechos de Jacó de Serugh.

Eu disse há pouco que Jacó velou, escondeu essa imagem sob um véu. Jacó diz: “O profeta Moisés introduziu a história do homem e da sua mulher, / pois que por meio destes fala-se do Cristo e da sua Igreja. / Com olhos arrebatados pela profecia, Moisés viu a Cristo, / e como Ele e a sua Igreja viriam a ser um nas águas do batismo; / a Ele, viu-O vestido de Igreja no seio virginal / e a Ele, viu-a vestida de Cristo na água batismal”.

Que troca admirável! Ele encarna-se e, na qualidade de Filho de Deus, torna-se homem para manifestar nas águas do Batismo o homem revestido de Cristo.
“o Esposo e a Esposa tornaram-se espiritualmente um, / e foi sobre eles que Moisés escreveu ‘os dois serão um’.” Então Moisés, certamente coberto com um véu, “viu a Cristo e chamou-o homem, / viu também a Igreja e chamou-a mulher”. É formidável: chamou homem o que era Cristo, e à humanidade da qual Cristo se revestiu chamou Igreja. “E posto que fora coberta com um véu, / ninguém sabia o que era aquela grande pintura, nem o que representava.”

Mas agora vem a parte mais bonita.
“Depois da festa de núpcias [ou seja, depois da Páscoa de Cristo], Paulo entrou e viu / o véu a cobri-la; tomou-o e tirou-o do belo casal. / Assim descobriu e revelou ao mundo inteiro Cristo e a sua Igreja / que o profeta Moisés havia retratado na sua profecia. | O Apóstolo estremeceu e gritou: ‘Grande é este mistério’ / e pôs-se a mostrar o que era a pintura coberta: / ‘Nos que a escritura chama homem e mulher / eu reconheço Cristo e a sua Igreja, os dois que são um só’. / O véu do rosto de Moisés foi removido; / vinde todos e vede um esplendor que nunca se exaure; / o mistério outrora velado veio agora à luz, / Regozijem-se os convidados às núpcias com o Esposo e a Esposa, quão belos! / Ele deu-se a ela, ele que nascera de uma pobre donzela; / fê-la sua, e esta foi a ele ligada, e com ele rejubila. / Ele desceu às profundezas e ergueu a humilde menina às alturas, / porque são um, e onde ele está, lá está ela com ele. / O grande Paulo, de tão grande profundeza entre os apóstolos, / expôs o mistério, agora dito com clareza. / A grande beleza que fora velada agora foi aberta, / e todos os povos do mundo viram o seu esplendor. / O Noivo fez entrar a filha do dia num novo ventre, / e as águas de provação do batismo foram as dores que a trouxeram à luz: / Ele permaneceu na água e convidou-a: ela desceu, cobriu-se dele como um manto, e subiu; / na Eucaristia recebeu-o, e assim as palavras de Moisés, que os dois seriam um, cumpriram-se. / Da água deriva a casta e santa união / da Esposa e do Esposo, unidos em espírito pelo batismo. / Nem as mulheres se unem aos maridos da mesma forma / como a Igreja está unida ao Filho de Deus. / Que esposo morre pela sua esposa, senão Nosso Senhor? / Que esposa escolhe um homem massacrado como marido? / Quem, desde o princípio do mundo, já deu o seu próprio sangue como dom nupcial, / a não ser o Crucificado, que selou o matrimônio com as suas feridas? / Quem já viu um cadáver colocado em meio à festa de casamento, / com a esposa a abraçá-lo e a esperar ser por ele consolada? / Em que casamento, a não ser neste, despedaçaram / o corpo do esposo e ofereceram aos convidados em vez de qualquer outra comida? / A morte separa as mulheres dos maridos, / mas aqui é a morte que une esta Esposa ao seu Amado! / Ele morreu na cruz e deu o seu corpo à Esposa glorificada, / que o recebeu e o come todos os dias à sua mesa. / Ele abriu o seu lado e uniu o seu cálice ao santo sangue / para o dar de beber a ela e fazer-lhe esquecer os seus muitos ídolos. / Ela ungiu-o com óleo, revestiu-se dele na água, consumiu-o no Pão / bebeu-o no Vinho, para que o mundo pudesse saber que os dois são um. / Ele morreu na cruz, mas ela não o trocou por outro; / ela foi cumulada de amor com a sua morte, sabendo que desta vem a vida”.

É muito forte o fato de o homem e a mulher, no sacramento do Matrimônio, serem enxertados na unidade do Filho de Deus com a humanidade, com a Igreja. Cristo não existe mais sem um corpo, mas se trata de um corpo de glória, de um corpo ressuscitado. O Matrimônio participa dessa união indissolúvel e inabalável entre Deus e o homem.

Vou parafrasear aqui, mas só um pouquinho, São João Crisóstomo, que afirma uma coisa que hoje muitos poderiam contestar. Ele afirma que o sacramento do Matrimônio é um testemunho mesmo para os consagrados que seguem o caminho da virgindade. Este sacramento, com efeito, atesta-lhes algo que poderiam não perceber imediatamente, nomeadamente que o Matrimônio realiza e é a expressão, na vida e na história, da unidade de Cristo com a sua esposa, de Cristo com a Igreja. Portanto, mesmo os celibatários, através dos casais desposados, compreendem que eles, graças à sua vocação batismal, participam também desta unidade de Cristo, Filho de Deus, com a humanidade.

Acredito que Nikolaj Berdjaev, neste contexto histórico atual, tem algo valioso a nos dizer. Uma vez, escreveu que nas tradições cristãs, o Matrimônio não foi ainda explorado, porque o cobrimos rapidamente com a família segundo a natureza. Espero que através deste texto e desta pequena imagem possamos compreender que, para nós, cristãos, a família é a expressão do Sacramento, e que essa expressão tem uma dimensão eclesial, logo, é inseparável da Igreja. Nela, os laços de sangue não podem estar em oposição à nossa participação ao Sangue de Cristo, embora seja fácil deixar vencer o sangue segundo a natureza e não o sangue da Eucaristia. Mas, como diz outro grande padre, Nicolau Cabásilas: “Somos verdadeiros consanguíneos de Cristo”. Os nossos pais deram-nos o sangue, mas o nosso sangue não é o dos nossos pais. Do momento em que no-lo deram, o sangue não é mais deles. Ao mesmo tempo, nós alimentamo-nos da vida, do sangue de Cristo, que se torna o nosso.

Portanto, para os cristãos, a família é expressão do sacramento e da eclesialidade, e mostra como vive neste mundo o homem quando permanece unido a Deus. Torna-se expressão da divino-humanidade de Cristo.

Para o uso da imagem, favor citar o autor com a seguinte redação: Obra de Pe. Marko Ivan Rupnik, 2021

Download

 

28 julho 2021